Descoberto em 2009 o feitiço mais antigo da humanidade, com o uso de um Bastão e uma Varinha Mágicka.
A Caverna Cloggs, localizada no sudeste da Austrália, guarda em suas profundezas um testemunho silencioso de práticas ritualísticas de aproximadamente 12 mil anos, revelando a continuidade de uma tradição espiritual transmitida por cerca de 500 gerações do povo GunaiKurnai. Em meio a pequenas lareiras dentro da caverna, dois gravetos cuidadosamente processados foram descobertos, apresentando sinais de queima leve e cobertura com gordura humana ou animal, indicando o uso desses artefatos em rituais antigos de feitiçaria. Esses gravetos, agora reconhecidos como os mais antigos artefatos de madeira encontrados na Austrália, guardam segredos da cultura GunaiKurnai, uma nação aborígene que habita a região sudeste do país.
A redescoberta desses artefatos se deu através da colaboração entre os GunaiKurnai e os acadêmicos da Universidade Monash, uma mudança significativa em relação às escavações realizadas na década de 1970, quando os arqueólogos, sem consultar os legítimos donos da terra, obtiveram resultados obviamente limitados. Em 2009, porém, uma nova investigação, fruto dessa parceria, trouxe à tona achados mais significativos, iluminando a profunda conexão espiritual que o povo GunaiKurnai mantém com suas terras ancestrais e as práticas rituais que nela floresceram.
Foram descobertos dois bastões de Casuarina na Caverna Cloggs, parcialmente colapsada há cerca de 6 mil anos, e eles oferecem uma visão fascinante das práticas espirituais e culturais do povo GunaiKurnai. Encontrados em áreas não afetadas pelo colapso, os bastões, datados em aproximadamente 12 mil e 11 mil anos, respectivamente, apresentam sinais claros de uso cerimonial. O primeiro bastão, levemente queimado, sugere que era utilizado em rituais, enquanto o segundo, com uma extremidade pontuda, indica que funcionava como uma ferramenta de poder, possivelmente em práticas de feitiçaria ou cura. A preservação desses artefatos por milênios deve-se às condições ambientais favoráveis da caverna, incluindo sedimentos finos, um ambiente seco e solo neutro a levemente alcalino, que juntos permitiram que esses bastões e outros materiais, como folhas, permanecessem intactos.
As duas lareiras em miniatura com Varas Ritualísticas aparadas, imediatamente após terem sido expostas por escavação na praça R31 da Caverna Cloggs, com as bases das Varas ainda não separadas dos sedimentos onde estão assentadas.
Os dois artefatos de madeira encontrados nas instalações XU11 e XU8–9 da Caverna Cloggs são ambos feitos de espécies de Casuarina. A análise anatômica dos bastões revelou que, ao contrário da madeira que normalmente cresce de forma desigual ao redor do núcleo para resistir à gravidade, os bastões encontrados apresentavam uma estrutura celular uniforme, sugerindo que se originaram de árvores que cresceram verticalmente.
A Varinha
A Varinha das instalações XU11, datada entre 11.420 e 12.950 anos atrás, mede 39,5 cm de comprimento e entre 1,3 e 4,3 cm de largura, alargando-se até o pomo, onde se bifurca ao encontrar outro galho ou tronco. Ela apresenta uma superfície lisa, exceto na extremidade do pomo, onde alguma casca foi preservada. A extremidade do pomo também mostra sinais de desgaste, indicando que foi quebrada manualmente enquanto a madeira ainda estava verde. A extremidade da ponta da Varinha apresenta escurecimento, possivelmente devido a uma leve queimadura ou adesão superficial de gorduras, mas a carbonização é superficial e não completa, sugerindo uma breve exposição ao calor.
Além disso, cinco galhos menores foram cortados do caule do bastão, deixando uma superfície lisa e reta. A ausência de queima nas áreas onde os galhos foram removidos impede a determinação do momento em que foram cortados, antes ou depois da queima da extremidade da ponta. Com base na morfologia e na condição de queima, a Varinha poderia ter sido utilizado para atiçar um pequeno fogo ou pode ter caído do fogo antes de ser totalmente carbonizado. No entanto, o ato de aparar galhos menores sugere que a Varinha tinha um propósito mais específico e cerimonial, pois tal esforço não seria necessário se ele fosse usado apenas para alimentar o fogo.
A análise da imagem acima, destaca a Varinha aparada em forma de gancho encontrado na lareira XU11 da Caverna Cloggs (d). Esta Varinha exibe uma extremidade na ponta que foi parcialmente carbonizada, indicando que esteve exposta ao fogo. A extremidade do pomo, marcada pelo retângulo azul, mostra sinais de tecido rasgado e uma extremidade fibrosa, sugerindo que a Varinha foi quebrada da árvore enquanto a madeira ainda estava verde. Os retângulos vermelhos indicam galhos maiores que foram aparados ou quebrados, enquanto os retângulos amarelos destacam pequenas junções de galhos que foram cortadas ou raspadas rente ao caule, resultando em uma haste lisa. A imagem (e) foca na extremidade em gancho, revelando elementos fibrosos que confirmam o estado verde da madeira no momento em que foi quebrada. A base de um pequeno galho cortado ou raspado rente ao caule principal é visível, reforçando a ideia de que a Varinha foi cuidadosamente preparada para um uso específico. As imagens (f) e (g) mostram diferentes bases de galhos, todas cortadas ou raspadas rente à haste principal, evidenciando um processo deliberado de modificação da Varinha antes de sua utilização, possivelmente em um contexto cerimonial.
O Bastão
O estudo sobre o bastão de XU8–9, datado entre 10.720 e 12.420 anos atrás, revela características que sugerem seu uso cerimonial e a aplicação de técnicas cuidadosas de modificação antes de ser exposto ao fogo. Medindo 19,7 cm de comprimento e com um diâmetro de 0,7 a 1,2 cm, o bastão apresenta sinais de carbonização parcial em uma extremidade e ao longo de 1,5 cm do caule, indicando uma breve exposição ao calor antes de o fogo ser extinto. A extremidade da ponta carbonizada do bastão permaneceu intacta nas cinzas, demonstrando que ele não foi removido de um incêndio prolongado, mas sim apagado rapidamente. Assim como a Varinha de XU11, este artefato apresenta a característica incomum de ter seus galhos laterais aparados rente à superfície, o que foi realizado antes da exposição ao fogo. Esses detalhes indicam que o bastão foi deliberadamente preparado e utilizado em um contexto ritualístico, sugerindo um significado espiritual ou simbólico importante para as pessoas que o criaram e manusearam.
A imagem acima mostra o bastão aparado da lareira XU8–9, que foi cuidadosamente preparado antes de ser utilizado no ritual. Na ampliação do pomo do bastão (b), são destacados os raios grandes, característicos do gênero Casuarina spp., especificamente da espécie C. Cunninghamiana, cujas características anatômicas incluem a distribuição uniforme e o tamanho regular dos vasos. A imagem (c) exibe a extremidade da ponta do bastão aparado, onde é visível a base remanescente de um galho que foi cortado rente à superfície lisa do bastão, evidenciado por um retângulo amarelo. Esses detalhes reforçam a hipótese de que o bastão foi cuidadosamente modificado para fins cerimoniais, antes de ser utilizado nas lareiras rituais da caverna.
A Madeira
A madeira é um material de profunda importância, escolhida e trabalhada com grande cuidado para servir como um canal para forças espirituais. Nos rituais dos GunaiKurnai, a criação de um bastão ritualístico começa com a seleção cuidadosa da madeira, que é considerada uma etapa crucial, pois a qualidade e o tipo de madeira carregam significados simbólicos e sagrados. Durante a confecção do bastão, os GunaiKurnai realizam atos rituais que incluem cânticos e invocações, imbuindo o objeto de poder espiritual. E o propósito final do bastão, utilizado em cerimônias para canalizar energias e intenções específicas, protegendo ou conectando-se com o mundo espiritual. A transformação da madeira em um objeto sagrado é uma forma de sacralizar a natureza e integrá-la ao mundo espiritual, refletindo a interconexão entre o físico e o espiritual.
Diz-se que as Casuarinas têm uma conexão especial com os ancestrais e são consideradas guardiãs de conhecimentos sagrados. Uma das lendas mais conhecidas entre os povos aborígenes é a história de um espírito ancestral que habitava uma Casuarina antiga. Segundo a tradição, este espírito era responsável pela proteção das terras e das pessoas. Em tempos de crise ou necessidade, os líderes tribais realizavam rituais ao redor da árvore, pedindo orientação e bênçãos. A árvore, com suas folhas pendentes e aspecto imponente, era vista como um canal para os mundos espirituais.
Outra lenda conta que a Casuarina tem o poder de curar doenças e proteger contra feitiçarias. Em cerimônias de cura, folhas e ramos da árvore eram usados como amuletos ou em infusões, acreditando-se que sua energia espiritual ajudava a restaurar a saúde e a energia vital dos doentes. As folhas da árvore, quando usadas em rituais, eram vistas como um meio de conectar o mundo material com o espiritual, facilitando a comunicação entre os humanos e os seres sobrenaturais. Em algumas regiões, há também a crença de que a Casuarina é um símbolo de resistência e perseverança. As histórias falam de como a árvore sobreviveu a condições adversas, como secas e tempestades, e como sua resiliência se tornou um símbolo de força e coragem para as comunidades locais.
A importância desses achados se dá pela conexão direta com os rituais dos curandeiros GunaiKurnai, conhecidos como mulla-mullung, documentados pelo etnógrafo Alfred Howitt no século XIX. Howitt, um dos poucos antropólogos de sua época que demonstrava um genuíno respeito pela cultura aborígene, descreveu com detalhes os rituais em que Bastões de Casuarina eram usados para lançar feitiços.
O Ritual
A etnografia¹ do século XIX oferece uma visão detalhada das práticas rituais entre os GunaiKurnai e grupos vizinhos da Austrália. Em 1887, o etnógrafo Alfred Howitt documentou as atividades de indivíduos chamados 'feiticeiros' ou curandeiros, que usavam magia tanto para ferir vítimas quanto para curar moribundos. Esses indivíduos eram conhecidos como 'mulla-mullung' entre os GunaiKurnai e alcançavam seu status através de treinamento do ritual. As práticas de feitiçaria eram realizadas em locais isolados, e Howitt descreveu como a magia era aplicada por meio de objetos pessoais da vítima, como cabelo ou fezes, e envolvia um bastão decorado com penas e gordura, que era colocado perto de um fogo ritual.
Os instrumentos utilizados nesses rituais eram bastões mágicos conhecidos como 'murrawan', adornados com penas e com um gancho em uma extremidade para imitar lançadores de lanças. Esses bastões eram considerados poderosos e eram usados em feitiçarias que incluíam o canto de encantamentos para completar o ritual. John Mathew, em 1925, descreveu esses bastões como tendo um gancho semelhante ao woomera e adornos de penas de gavião-águia.
Além disso, Howitt mencionou a crença dos Kurnai de que homens conhecidos como 'bunjil murrawun' podiam atrair vítimas por meio de encantamentos. Esses indivíduos usavam pedaços de madeira de Casuarina, árvores especialmente importantes nos rituais relacionados à morte entre os GunaiKurnai. Os etnógrafos Lorimer Fison e Alfred Howitt também notaram que a morte podia ser atribuída a feitiçaria e violência combinadas, e associaram o termo 'murrawun' à Casuarina, destacando sua importância nos rituais de morte.
"O processo do ritual envolvia amarrar algo pertencente à vítima ou pessoa doente no bastão, untá-lo com gordura e colocá-lo em uma fogueira, enquanto o mulla-mullung cantava o nome da pessoa. A queda do bastão na fogueira marcava a conclusão do feitiço"
Uma prática que coincide surpreendentemente com as características dos bastões encontrados na Caverna Cloggs.
Esses achados extraordinários não apenas validam as descrições de Howitt, mas também indicam a continuidade de práticas espirituais entre os GunaiKurnai ao longo de milênios. A descoberta desses bastões é um testemunho da resiliência cultural e espiritual do povo GunaiKurnai, que manteve suas tradições vivas apesar dos desafios impostos pela colonização e a subsequente marginalização de suas comunidades. Os pesquisadores envolvidos na redescoberta desses artefatos enfatizam sua relevância para a cultura GunaiKurnai, destacando que os objetos foram preservados no local como um meio de transmitir conhecimento para futuras gerações, um legado que continua a ecoar na pesquisa contemporânea.
¹ Etnografia - É a ciência das etnias. Do grego ethos (cultura) + graphe (escrita). A etnografia estuda e revela os costumes, as crenças e as tradições de uma sociedade, que são transmitidas de geração em geração e que permitem a continuidade de uma determinada cultura ou de um sistema social.
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